O fechamento das três fábricas da Ford, anunciado na segunda-feira (11), é um símbolo da desindustrialização brasileira. Conforme levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o País vê o número de indústrias cair ano a ano desde a recessão iniciada em 2014. A crise foi agravada com o golpe de 2016 e a ascensão ao poder de Michel Temer e Jair Bolsonaro, com suas políticas ultraliberais e anti-indústria.
Segundo a série histórica iniciada em 2002, o número de fábricas no Brasil crescia até 2014. Porém, entre 2015 e 2020, foram extintas 36,6 mil unidades fabris. Isso equivale a quase 17 estabelecimentos industriais exterminados por dia. Apenas em 2020, cerca de 5.500 fábricas encerraram suas atividades. Há seis anos, o País tinha 384,7 mil fábricas. No fim de 2020, a estimativa era de que o número tinha caído para 348,1 mil.
Pouco antes do anúncio da Ford, outras multinacionais já haviam comunicado que fechariam suas fábricas no Brasil – caso da Sony e da Mercedes-Benz, que encerrou a produção de automóveis. Desde 2018, ao menos 15 multinacionais de vários setores deixaram o País, num movimento que é mais dramático no setor industrial, com fechamento de fábricas e empregos.
“O processo de desindustrialização coincide com o início do Plano Real (o câmbio apreciado tornou os produtos brasileiros mais caros lá fora e os importados ficaram mais baratos no País). Além do custo Brasil, mais recentemente a produtividade caiu e parte do parque industrial não se modernizou”, diz o economista Fabio Bentes, da Divisão Econômica da CNC, responsável pelo estudo.
“A desvalorização recente do real ajuda o setor agrícola, o extrativo, favoreceu a balança comercial. Mas o efeito para a indústria não é instantâneo”, agrega Bentes. Se a produção cresce, cada aumento de um ponto porcentual gera abertura de cerca de 1.200 mil unidades produtivas no ano seguinte. Esse mesmo raciocínio vale no caso de queda de produção. “Diante disso, não se pode descartar que haja uma redução ainda mais forte no número de indústrias neste ano”, conclui.
Peso menor no PIB
Veja-se o exemplo da indústria de transformação. Nos anos 2000, esse segmento – que exclui petróleo e minério – já vinha perdendo relevância na economia diante do avanço dos outros setores. O peso da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) passou de 13,1% em 2000 para 10,1% em 2019.
Com a pandemia, o índice ficou abaixo dos 10% pela primeira vez de janeiro a julho de 2020. É a menor participação do setor na economia brasileira em 73 anos – ou seja, desde 1947 –, segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
Para Rafael Cagnin, economista-chefe do Iedi, esse processo desindustrialização, ao contrário do que ocorreu em outras nações, foi “muito rápido, agudo e prematuro”. O Brasil, hoje, afasta investimento estrangeiro e acelera sua desindustrialização precoce, sem desenvolver um setor de serviços capaz de crescer em produtividade e renda.
“Os países, em sua maior parte, só começam a passar por isso depois de se tornarem ricos. No Brasil, aconteceu bem antes”, explica Cagnin. “Enquanto outros avançavam para ramos de maior sofisticação tecnológica, estávamos às voltas com a crise da dívida dos anos 1980, a hiperinflação.”
Segundo estudo do Iedi, enquanto a participação da indústria na economia mundial caiu em um terço de 1970 a 2017, no Brasil recuou à metade. Entre 30 países, só Argentina, Filipinas, Rússia e Brasil começaram a ver a indústria perder espaço quando a renda per capita ainda era inferior a US$ 20 mil, o que é considerado um nível baixo pelo estudo.
“O Brasil é ponto fora da curva no panorama internacional. Os ramos de maior sofisticação tecnológica – como microeletrônico e TI, que são a base da indústria 4.0 – continuam ganhando participação no mundo”, diz Cagnin. “O Brasil não conseguiu formar as competências na magnitude necessária para arrefecer essa desindustrialização.”
A perda de participação da indústria no PIB é um movimento tido como normal. À medida que se desenvolvem, as economias veem as atividades de serviços ganharem peso na estrutura produtiva. Porém, desde 2012, todas as grandes potências mundiais começaram a resgatar políticas industriais desenhadas para desenvolvimento de tecnologias mais avançadas – o que não ocorreu no Brasil.
Para a economista Juliana Trece, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), “o Brasil está longe de ser uma sociedade que já comprou todos os bens industriais e passou a gastar mais com serviços”. A seu ver, o fator determinante é a falta de competitividade, que dificulta a atração de investimentos.
Agroindústria x Montadoras
Para João Carlos Ferraz, professor do Instituto de Economia da UFRJ e ex-diretor do BNDES, há setores que avançaram, como o da agroindústria, em que o Brasil ganhou competitividade. Mas trata-se de exceção. “Em termos relativos, não andamos nem o suficiente para ficar na média internacional. A Ford não é um caso isolado”, diz.
“Sempre nos gabamos de o Brasil ser um dos três maiores receptores de investimento estrangeiro direto, mas já caímos na liga. Havia um movimento de vinda de centros de pesquisas para cá – de IBM, GM, L’Oréal –, que diminuiu o gás fortemente. Preocupa muito esse refluxo”, agrega Ferraz. Segundo ele, há uma rigidez no investimento das empresas em pesquisa e desenvolvimento, que não passa de 0,7% da receita “há anos”.
Para Paulo Vicente, professor da Fundação Dom Cabral, só o agronegócio pode, hoje, levar o país a se reindustrializar mais rapidamente: “Vamos virar um país agroindustrial. Deixar de exportar commodities agrícolas para vender produto industrializado, com maior valor agregado”, afirma Vicente.
O fechamento das fábricas da Ford pode não ser o último no setor automotivo, diz Rodrigo Nishida, economista da LCA Consultores. Além de movimentos globais de fusões no setor se refletirem aqui, as montadoras ainda tentam se recuperar da última crise. Nas contas da LCA, a produção de carros no país só retomará os níveis de 2019 em 2022. Para voltar aos 3,5 milhões de 2013 – marca mais alta das montadoras –, talvez só na próxima década, estima Nishida.
Desde 2011, o setor automotivo vem perdendo participação no PIB, conforme levantamento feito por Juliana Trece. O pico da série, diz ela, ocorreu em 2008, quando a produção de veículos respondia por 1,1% do PIB. De lá para cá, o peso do setor na economia oscilou invariavelmente para baixo, atingindo a menor fatia em 2016 (0,2%).
Nos anos seguintes, 2017 e 2018, houve ligeira recuperação (0,3%). A economista deduz que, para 2019 e 2020, as previsões são pessimistas. “Com a pandemia e a saída da Ford, é esperado que a tendência de redução continue”, elevando a já expressiva ociosidade no setor.
Pelos cálculos de Rodrigo Nishida, da LCA, o Brasil tem capacidade para produzir 5 milhões de automóveis por ano, graças a incentivos fiscais e crédito. Foram produzidos pouco mais de 2 milhões em 2020, e o País não é competitivo para exportar. As dificuldades das montadoras têm impacto em uma longa cadeia de indústrias no país e muitos empregos. “O setor é um dos maiores multiplicadores de produção”, diz Nishida.
Na opinião do vice-presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e presidente da Abiplast, José Ricardo Roriz Coelho, multinacionais como a Ford investem em fábricas com escala global de produção. Como o Brasil não cresce e a renda da população se mantém no patamar de dez anos atrás, os produtos ficam inacessíveis aos brasileiros e as empresas não avançam.
Entraves
Segundo Rafael Cagnin, do Iedi, a indústria, mesmo com a recuperação recente, ainda produz 14% abaixo do nível de 2014. Esse quadro é fruto de um ambiente de negócios hostil e de fatores estruturais que atingem a competitividade internacional do setor. É o caso do complexo sistema tributário brasileiro. Outro ponto fundamental, diz, é a necessidade de uma política de inovação, hoje fora da agenda nacional. Sem contar a negligência do governo Bolsonaro com a pandemia de Covid-19.
“Não há mais programa emergencial, o número de casos de Covid continua acelerando e há dúvida sobre a celeridade da vacinação”, diz ele. “Além disso, há entraves estruturais, como o nó tributário e a agenda de inovação. Nos últimos três, quatro anos, houve redução sistemática do orçamento público e privado para inovação.”
Para Cagnin, a restrição dos fluxos entre países durante a pandemia pôs em xeque o modelo de suprimento geograficamente disperso e integrado. “No atual ambiente internacional de rearranjo tecnológico e das cadeias globais de valor, o ônus de ter baixa competitividade pelo sistema tributário tende a aumentar”, diz ele. “Precisamos de um indicativo muito claro de que esse problema será solucionado. Sem isso, será muito complicado atrair e preservar investimentos.”
Com informações do Estadão e do O Globo