Dois meses após a Ford anunciar o fim da produção de carros em Camaçari (BA), empresas de autopeças instaladas na região já trabalham no desmanche de suas fábricas. Os fornecedores diretos da Ford não acreditam na chegada de outra fabricante que substituta a montadora norte-americana a curto prazo – e se concentram em estancar prejuízos imediatos, como custos de pessoal e aluguel de galpões. Essas empresas também negociam com a Ford uma solução para o encalhe de produtos e insumos.
Em visita a Camaçari, cidade industrial a 40 minutos de Salvador, uma reportagem do Valor Econômico constatou que algumas dessas fabricantes de autopeças correm para transferir ou vender o maquinário. São robôs, compressores de ar e resfriadores de água de última geração, todo um capital produtivo acumulado ao longo de duas décadas. A maior parte da cadeia de fornecedores chegou à região junto à Ford, em 2001.
Como até hoje a indústria automotiva baiana se resumia à atividade da montadora, o desmanche surge como destino dos negócios do setor na Bahia. No entanto, grupos maiores ou que concentram mais etapas de produção em outros estados têm mais fôlego para atravessar o fim da demanda local.
Conforme o Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores), os maiores fornecedores da Ford, chamados “tier 1”, que abastecem diretamente a montadora, somam 30 empresas com 32 fábricas ou centros logísticos em Camaçari. Desse total, 18 ficam dentro do condomínio da Ford. Por produzirem vários sistemas do veículo, são denominadas “sistemistas”.
Outras 12 têm fábricas em outros pontos da cidade. Quase todas são subsidiárias de grupos globais, como as alemãs Bosch (velas de ignição) e Benteler (trem de força e a suspensão), a italiana Pirelli (pneus), a portuguesa Sodecia (peças de carroceria) e a francesa Faurecia (escapamentos e peças plásticas).
Essas fabricantes empregavam mais de 3 mil trabalhadores diretos em Camaçari. O número não é distante dos 4,05 mil empregados diretos da fábrica da Ford. Somados, os contingentes indicam as cerca de 7,5 mil pessoas que devem perder seus empregos na cidade.
Segundo Vladson Menezes, superintendente da Federação das Indústrias da Bahia (Fieb), esses postos representam cerca de 4% dos empregos industriais do estado. Embora relevante para uma cadeia que gira entorno de uma única empresa, o número caiu nos últimos anos. Dados da pesquisa Industrial Mensal (PIA-IBGE) mostram que, em 2018, Ford e fornecedoras tinham 8,63 mil funcionários diretos. O encolhimento traduz a queda de participação da montadora no mercado brasileiro.
É o caso de uma fábrica fora do condomínio da Ford, a norte-americana Tenneco, que produzia escapamentos para os modelos sedã e hatch do Ford Ka. Os dois operários encontrados disseram que 80% dos empregados, 20 pessoas, já haviam sido demitidos. Eles desconheciam, até o momento, esforços para a venda de maquinário. Mas o fato é que há pouco nos três pequenos galpões que a fabricante mantém em Camaçari: uma máquina para dobra de canos metálicos e uma para encaixe e soldagem de componentes, entre outras. As peças são pré-fabricadas em outra unidade, em Mogi-Mirim (SP).
De acordo com a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais do governo da Bahia (SEI), a cadeia que chegou a representar 7,3% da indústria de transformação do estado viu esse percentual ser rebaixado a 1,9% em 2016 e estacionar em 3,5% em 2019. Um dos autores da pesquisa, o economista Gustavo Pessotti afirma que a pandemia derrubou essa participação ao patamar de 1,7% em 2020, antes de a Ford deixar de produzir no estado.
Em geração de riqueza, informa a SEI, nos nove anos até 2019, a participação do complexo industrial da Ford no Produto Interno Bruto da Bahia (PIB) caiu à metade, para 0,3% – em 2020, foi de 0,15%. Acrescentada a indução no restante da economia baiana, Menezes, da Fieb, calcula perda de 1,3% no PIB estadual. Na conta de Pessoti, essa redução será de até 2%.
A operação desmanche envolve várias multinacionais. A canadense Magna International fechou as duas fábricas em Camaçari, onde eram feitos bancos e estruturas metálicas para chassis de carros da Ford. Dos 180 empregados de uma das fábricas, só restaram oito para serviços de manutenção e gestão de estoque. Segundo fontes ligadas a potenciais compradores do maquinário da empresa, a ideia é desfazer-se das máquinas a toque de caixa. Isso inclui robôs, utilizados na soldagem.
A Magna investiu pesado no Brasil há nove anos, quando comprou fábricas em quatro estados. A queda vertiginosa da produção de veículos, após o auge de 2013, impôs readequações ao negócio. A companhia fechou uma fábrica em São Bernardo do Campo (SP) um ano antes de a Ford anunciar o fim da produção naquele município.
Considerando o desmanche de um polo automotivo como o de Camaçari, haverá uma enxurrada de máquinas usadas no mercado, segundo Wagner Bello, gerente-geral para a América do Sul da fabricante de robôs japonesa Fanuc. “Mesmo com a crise, no final essas empresas vão conseguir vender tudo. Só não se sabe a que preço e para quem. Mas o mercado vai absorver (os robôs). É um equipamento totalmente adaptável a outras funções se for reprogramado e tiver a ponta modificada”, afirma.
Segundo Bello, um robô novo de solda Mig – como os que a Magna tenta vender – custa entre R$ 120 mil e R$ 150 mil a depender do câmbio. No mercado de segunda mão, diz ele, o preço é bem menor, mas de difícil estimativa por variar muito em função da oferta.
Diretor do Sindipeças para o Nordeste, Marcelo Senna encara a desmobilização de fábricas das sistemistas como tendência irreversível. A seu ver, esse processo se tornou mais urgente em Camaçari – a paralisação da Ford sem aviso prévio aos fornecedores não permitiu que as empresas se programassem. “Foi uma decisão de negócio legítima, mas feita de forma errônea porque não permitiu às empresas do entorno se prepararem.”
Para Senna, alguns fornecedores têm de custear estoques para seis ou sete meses à frente, sem contar que alguns componentes importados vêm por transporte marítimo, em longas jornadas. “A Covid prejudicou esse processo”, diz. “Em dado momento, tudo foi cortado. Depois, quando a economia voltou em ‘V’, muitas empresas, em vez de trazerem um navio a cada mês, trouxeram até seis de uma única vez para garantir a produção.”
“Agora tudo isso fica pendurado. Todas (as fornecedoras) ficaram com muita coisa encalhada porque se programaram para atender a uma Ford cheia em 2021, com produção prevista de até 200 mil carros”, afirma. Segundo ele, as companhias “fatalmente” terão prejuízo, em um patamar que “ainda é difícil de calcular”.
Senna dá como exemplo a empresa onde trabalha como gerente de fábrica de peças de fixação (parafusos, porcas e arruelas) da americana Acument. Com fábricas em Atibaia (SP) e Contagem (MG), a empresa mantêm uma unidade logística em Camaçari para atender à Ford e outras sistemistas. A operação representava 35% do negócio no Brasil e envolvia, em números rebaixados pela pandemia, 120 toneladas de produtos por mês. “Nosso plano para a Ford já estava organizado. Como aço estava em falta no mercado, a Acument vinha fazendo um trabalho gigantesco para sustentar essa operação”, diz. O plano agora é incrementar o serviço para outras montadoras.
No momento, cada fornecedor negocia compensações com a Ford individualmente. O processo é encarado com normalidade pelo setor em função do nível de detalhamento dos contratos e da previsão de gastos. Em nota divulgada quando anunciou o fim da atividade industrial no Brasil, a Ford anunciou um gasto de R$ 4,1 bilhões para arcar com os custos de sua saída. Desse valor, R$ 2,5 bilhões estão relacionados a “compensações, rescisões, acordos e outros pagamentos”, informou a montadora.
Os custos da Ford se referem a indenizações a trabalhadores, fornecedores e concessionários. A verba inclui – segundo fontes do setor – os salários que têm sido pagos aos funcionários da própria Ford e também dos fornecedores instalados em seu parque industrial, que ainda não foram desligados.
Em nota ao Valor, a Ford disse que “está comprometida em cumprir todas as suas obrigações”. A montadora reconheceu a “natureza difícil” do anúncio do fechamento das operações e afirmou que trabalha junto às empresas em um plano “justo e equilibrado” para minimizar o impacto do encerramento da produção.
“Estamos em processo de negociação com os fornecedores, seguindo as regras estabelecidas nos contratos vigentes e a realidade específica de cada um.” Em relação a possíveis compradores da fábrica de Camaçari, a empresa disse que continuará “facilitando alternativas possíveis e razoáveis” para partes interessadas adquirirem as instalações produtivas disponíveis.
Com informações do Valor Econômico