“Vemos os (fabricantes) chineses como nosso principal concorrente – não a GM (General Motors) ou a Toyota. A China será a grande potência!” Foi assim que Jim Farley, o CEO sincerão da Ford, resumiu a visão da montadora norte-americana sobre o mercado de veículos elétricos. A declaração do executivo ocorreu em maio, durante a Cúpula de Finanças Sustentáveis da Morgan Stanley.
Não se trata apenas da Ford. Outras gigantes tradicionais do setor, como GM, Stellantis e Toyota, encaram com respeito a arrebatadora ascensão da China, que chega ao semento de elétricos com ao menos cinco montadoras competitivas – BYD, Geely, Great Wall Motor (GWM), Changan e SAIC. De acordo com o banco de investimento UBS, essas marcas passarão de 17% do mercado global de elétricos hoje para 33% até 2030.
De resto, embora Estados Unidos, Japão e União Europeia destinem incentivos à indústria automobilística, nada se compara ao apoio do governo chinês. “Como você os supera no custo se a escala deles é cinco vezes maior que a sua?”, questionou Farley, no mesmo evento. “Os europeus deixaram (as montadoras chinesas) entrarem e, agora, elas estão vendendo em alto volume na Europa.”
Em meio à competição, GM, Ford e Stellantis acabam de enfrentar uma greve histórica de sete semanas em Detroit. Sob a liderança do UAW (United Auto Workers), o sindicato que representa a maioria dos trabalhadores automotivos nos Estados Unidos, a paralisação garantiu aumentos reais nos salários, elevação do piso da categoria, subsídio de custo de vida e outros avanços. Custos e despesas das “big three” vão crescer.
A China, porém, não pode ser ignorada pelo fato de ser o maior mercado do mundo. Só em 2022, os chineses comparam nada menos que 20,5 milhões de veículos – quase 11 vezes mais que as vendas registradas no Brasil. Especialistas apontam que a demanda do país asiático levará as grandes montadoras a fecharem suas fábricas em outras regiões. O fechamento das três unidades da Ford no Brasil, em 2021, está diretamente relacionado à concorrência chinesa.
“É importante entender que, quando a Ford abriu mão de fabricar veículos no Brasil, isso teve muito mais a ver com suas operações globais. Na época, fechou fábricas aqui, na Índia e em outros mercados para concentrar investimentos e recuperar vendas na China, onde ia mal naquela época e até hoje é o maior mercado do mundo”, declarou ao UOL Ricardo Bacellar, da consultoria Bacellar Advisory Boards.
Assim, a China impõe uma “escolha de Sofia” ao setor automotivo global. As montadoras centenárias sonham em asfixiar as fabricantes chinesas neste momento em que veículos movidos a combustível fóssil são substituídos por carros movidos a bateria. Automóveis híbridos e elétricos representam o futuro da indústria e, se nada for feito, “a China será a grande potência”. Ao mesmo tempo, não dá para declarar guerra total e correr o risco de perder os consumidores de Pequim, Xangai, Shenzhen, Guangzhou e outras cidades chinesas.
“Em última análise, algumas destas empresas de automóveis que têm sido responsáveis pela forma como pensamos sobre os carros nos últimos cem anos terão apenas uma fração do seu tamanho no futuro”, analisa Gene Munster, sócio-gerente da Deepwater Asset Management. O drama dessas montadoras talvez seja constatar que a disputa é muito, muito ruim com a China – mas contraditoriamente pior sem ela.
André Cintra
Jornalista, é assessor de Comunicação da Fitmetal